Saiu
do consultório atordoada. Que notícia mais inesperada, pensou ela.
Doença
de Jacob, definitivamente não era algo que, um dia, pensara ter. Ninguém pensa
nisso.
O
médico dissera, com termos mais elaborados, que seu cérebro estava se
transformando num queijo suíço. E era uma doença inevitavelmente mortal. Só
existiam paliativos. Não teria muito tempo dali em diante. Logo começariam os
espasmos musculares, as intermináveis enxaquecas e a demência.
No
caminho para sua casa, não aguentou o peso. Parou sob a sombra de uma árvore e
chorou. Ia morrer logo! Deixaria mãe, pai e seu irmão. Seus amigos. Seu
noivo... seu grande amor. O casamento estava marcado para dali a dois meses e
meio. Ela olhou para o anel em seu dedo. O brilho do pequeno diamante a fez
lembrar dos olhos de seu noivo. Uma dor cada vez mais insuportável crescia
nela.
O
que faria, então?
Chegou
em casa, olhando para os móveis, para as fotos sobre a estante. Quantas
histórias ali.
Iria
daquele mundo, mas não queria conviver com olhares piedosos, com despedidas
sofridas nem que Daniel se casasse com ela como último gesto de compaixão. Se
despediria de todos, mas o faria sem que soubesse que era uma despedida.
Sentou
no chão de seu quarto, e Cotton, sua pequena companheira de quatro patas subiu
em seu colo. Acariciou por alguns minutos seu pelo fofo e pensou que teria que
se despedir dela também.
Pegou
algumas caixas, com lembranças importantes...
Para
lidar com a família, diria que se mudaria para outro país, fazer o mestrado e
trabalhar com sua arte. Uma ideia antiga, que seus pais já ouviram e que, agora
que rompera do Daniel, teria como realizar. Depois de muito tempo, com bastante
sorte, encontrariam uma carta que lhes explicariam o que realmente aconteceu. O
quanto ela os amava e como ela não queria ir embora deste mundo deixando como
última imagem sua uma filha 15 quilos mais magra, com propensão a convulsões e
demente, incapaz de reconhecê-los.
Com
os amigos seria menos complicado. A maioria a esqueceria com o tempo, e cada um
teria tantos outros amigos para compensar. Sua melhor amiga receberia uma carta
também, destacando as boas lembranças e devolvendo todos os presentes que
recebera e guardara com carinho.
A
parte mais difícil e complicada envolveria o homem que Anneth escolhera como
companheiro, amigo e amante para toda a vida.
Se
eles casassem, não teriam tempo nem para uma semana de lua de mel. Sem falar
que dali a duas semanas, sendo otimista, a doença já mostraria suas
consequências e todos saberiam que ela estava doente.
A
solução mais eficaz seria terminar com ele. Magoá-lo com uma falsa traição e o
fazer odiá-la. Seria menos doloroso para ele ser o noivo traído, do que um
esposo viúvo.
Viúvo
de um amor jovem. Viúvo dos planos que jamais se realizariam.
Daniel
não receberia uma carta. Não seria informado sobre o que realmente acontecera.
Se soubesse, seria tomado pela culpa por tê-la ofendido com os piores nomes da
terra. Não. Ele seguiria com sua vida. Levaria alguns meses para superar a
“traição”. Algum tempo para deixar de amá-la. Até conhecer outra mulher, se
apaixonar, fazer novos planos. Casaria e, num dia especialmente feliz com sua
nova esposa, que sorte a dele! Estava mais feliz e que aquela mulher que um dia
fez parte de seus planos, e que lhe magoou, fez muito bem em ir embora de sua
vida. Que estava muito melhor agora.
Anneth
terminou de pensar em tudo isso com uma forte dor no peito. Sua cabeça doía e
sentiu-se muito fraca. Separou algumas coisas e começo a escrever as cartas.
Não
lembra que horas foi dormir. Nem lembra de ter acordado.
17
horas depois de Anneth não atender a nenhuma das ligações que fizera, Daniel
resolveu procurar seus pais e para sua infeliz surpresa, ela também não informou
a eles seu paradeiro. Foram direto para o apartamento dela.
Bateram
na porta e ouviram os latidos abafados de Cotton. Chamaram por ela algumas
vezes antes de Daniel arrombar com um único chute a porta da entrada.
Olharam
por todos os cômodos antes de correrem para seu quarto.
Os
três se olharam apreensivos e carregavam no olhar a tristeza do que acreditavam
que encontrariam atrás daquela porta.
Foi
Daniel que abriu a porta e nem percebeu que seus sogros começavam a chorar com
desespero. A sensação foi de que seu coração parara. Por uma eternidade...
Anneth
estava no chão, deitada, meio encolhida como se estivesse com frio. E deitada
perto de seu rosto, Cotton olhava triste para sua dona, talvez guardando seu
cheiro na memória.
Ao
redor dela, fotos dela com a família, com os amigos, com ele. Caixas com muitos
papéis e envelopes. Eram cartas de amigos e algumas dele, que ela guardava. Viu
uma rosa seca, que ele lhe dera quando a pedira em casamento, papel e caneta. Aproximou-se
dela. Seus olhos estavam fechados, e sua pele estava fria e pálida quando a
tocara. Não carregava expressão de sofrimento e percebeu que a aliança de
noivado não estava em seu dedo, e sim na palma de sua mão.
Reconheceu
sua letra numa folha branca e leu as oito primeiras e únicas linhas do que ela
começara a escrever e não conseguira terminar.
“Mãe e pai
Não sei bem como dizer em uma só
carta o que me aconteceu, o porquê tive de ir embora e o quanto amo vocês.
Estou doente. Muito doente. E me vi obrigada a me separar de vocês porque,
ainda mais doloroso do que me separar, seria ir e deixar a imagem que nunca
quis que vocês vissem em mim. Guardem em seus corações meus sorrisos, meus
abraços e nossos momentos mais felizes. Fui assim e guardem isso.
Peço que entendam a dor do Daniel,
e nunca, por favor, nunca contem a ele o que me aconteceu... Ele fez meus dias
mais felizes, e eu o amo tanto mãe e pai... amo tanto... ”
Anneth partiu muito antes do tempo que ela própria havia se dado. Não foi a doença que a levou. Seu coração foi ficando fraco, amedrontado e já carregava nele a dor da saudade de cada um que ela tanto amava e que teria que se despedir. Ele parou e levou consigo seu tempo e suas chances de dizer adeus.